terça-feira, 16 de agosto de 2011

deserto

A quase ausência de sua sombra na areia indicava que o sol estava a pino. Já havia caminhado no mínimo seis horas sem parar, pois tinha visto o sol nascer naquela imensidão de dunas. As únicas coisas que o faziam lembrar-se de estar vivo eram o vento quente, a sede e a saudade daquelas margueritas que Don Claudio servia no bar. Era mais provável ser avistado por abutres ou outros predadores esperançosos do que por algum avião ou outro transporte que pudesse tirá-lo de lá, já que ninguém sabia que iria fazer essa viajem. Arrependia-se até o último fio de cabelo de ter entrado na situação, mas não podia fazer nada. A culpa era toda sua, havia planejado o roteiro com um ano de antecedência, comprado as passagens e tirado passaporte e visto. Tudo para realizar um sonho, não sabia que ia dar tão errado, também, quais as chances de o piloto do pequeno bimotor ter um ataque do coração e logo após o co-piloto morrer do coração por causa da morte súbita do piloto?
Caíra em algum lugar no deserto. Já não agüentava mais andar, fez as pazes com Deus, ou com quem estivesse disponível no momento, assistiu todo o filme sobre sua vida e com reprise. Deitou na areia, já não tão quente, caminhara o dia todo. Somente aguardava pelo chamado dela, a que todos chamam de morte.
Deitado no chão viu um escorpião sair de um buraco e vir em sua direção. Pensou “é agora”, mas o escorpião nem notou a sua presença. O que fazer?
Pensou em tudo o que fizera até então (mais nas boas ações) e em tudo que queria ter feito (inventou algumas coisas na hora). Esperou mais um pouco, agora uma víbora do deserto saía de sua toca. Chegou bem perto, olhou, cheirou e entrou na mesma toca que saíra.
Pensou no bar, no dinheiro que economizara para a viagem, “se tivesse gasto todo o dinheiro em bebida e mulheres não estaria nessa situação”. Agora já podia ver dois urubus, ou seria abutres, algo assim. Sabia que eles não atacavam, só esperavam a presa morrer e podiam cair na carne. Não estava morto ainda, mas tinha o consolo de que seria logo. Como seria?
Pensou em sua família, quer dizer os parentes que já não via há muito tempo. A mãe era doméstica, mas não queria mudar de vida. Não aceitou as propostas de vir morar com ele na cobertura. Os dois irmãos moravam a cinco mil quilômetros com suas respectivas famílias. Foi o único que ainda não tinha gerado herdeiros, sua mãe o cobrava muito por isso. “Preciso pensar um pouco mais na minha vida antes de ter um filho”, vivia dizendo à mãe e a todos que perguntavam. Os abutres foram embora. Parece que sua espera pelo fim seria mais longa do que imaginava.
Pensou em sua quase esposa, haviam sido noivos por quatro anos, não deu certo, ele trabalhava demais, ela disse que o largou por que ele trabalhava demais.
Anoiteceu, ainda estava deitado na areia, agora fria, pensando se demoraria muito para cair no sono eterno. Em momento algum pensou se haveria ou não vida após a morte. Agora veio o frio. O frio dói, sofreu. Considerou a hipótese de morrer de frio. Nesse momento lhe veio sua imagem aceitando a proposta da multinacional. Ganharia dez vezes mais trabalhando duas vezes menos, seu coração acelerou só com a lembrança, deu um suspiro.
Levantou, recompôs-se (não restava muita coisa). Sentou novamente, sentiu-se leve, aliviado, não sabia a razão. Lembrou que havia sido demitido da multinacional e processado. Deixara-se corromper. A viagem seria um recomeço. Uma vida nova. Havia quitado todos os seus débitos. Sorriu mais uma vez. O sol já vinha alto.
Dormiu novamente.

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